Devoção

A Instituição da festa do Sagrado Coração de Jesus

A encíclica "Haurietis Aquas"

Em 15 de maio de 1956 Pio XII publicou a encíclica "Haurietis Aquas" (1): "vós tirareis com alegria águas das fontes do Salvador" (2). "Palavras - prossegue o Papa – que retornam em modo espontâneo à nossa mente, repensando aos cem anos que transcorreram desde que o nosso predecessor de memória imortal Pio IX, feliz em favorecer os votos do mundo católico, estabeleceu que a Festa do Sacratíssimo Coração de Jesus fosse celebrada em toda a Igreja" (3).

A extensão da Missa do Sagrado Coração a toda a Igreja, decretada por Pio IX, em 23 de agosto de 1856, foi o término de um longo percurso. Caminho repleto de dores e dificuldades, que durou mais de dois séculos, e marcado – especialmente nos séculos XVII e XVIII – por ferventes controvérsias. Foi também um período de crescimento em profundidade e difusão da devoção ao Sagrado Coração.

A história desta devoção é distinta daquela da introdução da festividade do Sagrado Coração na liturgia universal da Igreja. Duas realidades distintas mas intimamente ligadas e interdependentes. Tal interdependência verificou-se em dois modos. A crescente devoção popular em honra ao Sagrado Coração, o aprofundamento teológico, bíblico e a benéfica utilidade pastoral da devoção exercitaram pressão para a instituição litúrgica da festividade. Esta, uma vez iniciada, suscitou novos estudos, que fizeram com que fosse mais clara a essência da devoção e o simbolismo do coração. Além disso, a prática pastoral cresceu – pode-se dizer - em maneira excessiva.

A história da devoção ao Sagrado Coração ou ao lado traspassado de Jesus é mais antiga, ampla e atraente da correspondente instituição litúrgica com missa e ofícios próprios. Depois do Concílio Vaticano II não se aceita em modo decisivo a visão dualistica entre "devoções" do povo e "liturgia institucional". Nos séculos passados havia um marcado dualismo cultual entre as "devoções" do povo cristão e o culto "litúrgico oficial-jurídico" aprovado pela autoridade eclesiástica.

O progresso da eclesiologia nos faz considerar "Igreja" o povo de Deus, não prescindindo da autoridade hierárquica dos pastores. Diminui, portanto, a distinção que vigorava antes do Concílio. Narrando e analisando os eventos mais importantes da devoção popular ao Sagrado Coração e a instituição da festividade litúrgico-canônica, adaptamo-nos à mentalidade fortemente dualistica dos últimos séculos.

A introdução de uma Missa e Ofício na liturgia universal foi sempre antecedida por um longo processo. Não levando em consideração experiências de almas elevadas, iniciemos a história deste processo com o aparecimento de sinais, que se tornaram públicos, que dizem respeito à devoção ao Sagrado Coração.

O primeiro "sinal" público de devoção ao Sagrado Coração não se deu na Europa. Verificou-se no Brasil no início da evangelização deste imenso país. Foi São José de Anchieta (4), apóstolo do Brasil, jesuíta que dedicou ao Sagrado Coração uma modesta igreja em Guarapari, no Espírito Santo, em 1552.

Francamente era de se esperar um sinal público da devoção ao Sagrado Coração na Europa. Ao contrário! O primeiro sinal público desta devoção apareceu, portanto, em um país então considerado "meio selvagem".

A surpresa cresce conhecendo a experiência mística de São Pedro Canísio (5), contemporâneo de Anchieta. Canísio teve uma experiência mística com o Sagrado Coração 40 anos antes da construção da igrejinha no Brasil. Ele narra nas notas espirituais que no dia da profissão solene em Roma,foi rezar diante da tomba dos apóstolos no Vaticano. Na oração, entre outras experiências, teve esta:

"Tu, o Salvador, enfim, como se me tivesse aberto o Coração do teu sacratíssimo Corpo, que parecia ver diante de mim, ordenou-me de beber daquela fonte, convidando, por assim dizer, a abeberar-me nas águas da minha salvação, das Tuas fontes, ó meu Salvador" (6).

devoção ao Sagrado Coração no século XVII

No início do século XVII a devoção ao Sagrado coração de Jesus difundiu-se especialmente por meio dos padres jesuítas. Recordamos alguns dentre os mais conhecidos. Na Espanha Luis De La Puente (7) tratou desta devoção nas suas numerosas publicações. Na Hungria Matyas Hajnal (8) escreveu em língua húngara um livro de orações, no qual expõe "A devoção para os corações que amam o Coração de Jesus". Na Polônia Kasper Druzbicki (9) compôs o tratado "Meta cordium Cor Jesu". Na França Vicent Huby (10) propagou esta devoção nas missões paroquiais na Bretanha e nos cursos de exercícios a grupos de dezenas de pessoas.

A atividade dos padres jesuítas e de outros propagou a devoção ao Sagrado Coração em âmbito público, mas não muito vasto. Um grande passo adiante verificou-se mediante S. João Eudes (1601-1680). Grande foi a sua obra na difusão da devoção ao Sagrado Coração de Jesus e de Maria. A ele devemos a primeira composição da Missa e do ofício em honra ao Sagrado Coração. Leão XIII – que conhecia muito bem a história desta devoção – considerou-o "autor do culto litúrgico dos Sacratíssimos Corações".

Cinco anos depois da aprovação da missa verificaram-se as revelações de S.Margarida Maria. Alacoque (1647-1690) em Paray-le-Monial, de 1673 a 1675. S.Cláudio de la Colombière, jesuíta, confessor da vidente, considerou verdadeiras as revelações. Pouco depois, em 1676, ele foi enviado à Inglaterra. Devido a acusações falsas foi preso e adoeceu gravemente.

Foi mandado novamente à França em 1679, o seu estado de saúde não o permitiu de difundir a devoção ao Sagrado Coração. Inculcou-a aos estudantes jesuítas, dos quais era diretor espiritual. Morreu em 1681.

Entre aqueles estudantes havia Giuseppe Gallifet s.j. (1663-1749), que assimilou fortemente a mensagem das revelações. Ordenado sacerdote dedicou uma atenção extraordinária em ilustrar e difundir as revelações e a devoção ao Sagrado Coração.

Em tempo razoavelmente breve as revelações de S. Margarida concorreram enormemente ao movimento extraordinário de devoção. Ele sustentou S. Margarida e compôs a Missa em honra ao Sagrado Coração "Venite, exultemus", e o ofício correspondente. O bispo de Coutances, Don. Francesco de Lomènie de Briene, em 1688 aprovou o formulário da missa e permitiu a celebração da festa litúrgica do Sagrado Coração na sexta-feira depois da oitava de Corpus Christi.

O primeiro pedido a Roma: 1696

Depois da morte de S.Margarida Maria Alacoque, (1690), as Visitandinas da França, encorajadas pela difusão da devoção, apresentaram vários pedidos à Santa Sé: a aprovação da festa litúrgica do Sagrado Coração; a sua celebração na sexta-feira depois da festa de Corpus Christi; a faculdade, para todos os sacerdotes que naquele dia tivessem celebrado nos mosteiros da Visitação, de rezar a Missa "Venite", composta por pe. Gallifet.

Os padres jesuítas apoiaram a moção; houve também o patrocínio da rainha Maria, esposa de Jaime II Stuart, rei da Inglaterra. O cardeal Tousaint foi nomeado "ponente"desta causa. Durante a discussão da mesma, o promotor da fé, Don Bottini opôs-se resolutamente à aprovação. As razões alegadas foram sobretudo duas: a Igreja no culto público não se baseia em revelações privadas; a questão fisiológica do coração humano em relação às sensações passionais (amor, dor, etc.) não tinha sido esclarecida. Em 30 de maio de 1697 foi conhecido o êxito negativo da causa.Os formulários da Missa "Venite" também foram rejeitados.

Século XVIII – Obtenção da aprovação pontifícia

Não obstante a resposta negativa de 1697 a devoção continuava a difundir-se. O pe. Gallifet elencou 317 associações em honra ao Sagrado Coração surgidas na década de 1693 a 1703.

As Visitandinas pela segunda vez apresentaram o pedido de aprovação da festividade. O Papa Bento XIII era conhecido pela sua piedade. Às Visitandinas uniram-se os bispos franceses, o rei Augusto da Polônia e Felipe V da Espanha. O Pe. Gallifet, postulador, apresentou uma obra sobre o culto ao Sagrado Coração e a sua difusão, que tinha sido publicada em Roma no ano anterior (11). Na "causa" o Promotor da Fé era Prospero Lambertini (que se tornou Bento XIV). A decisão final foi: "Non proposita", que no estilo da Cúria Romana significava que a festividade não se aprovava. Dois anos depois (1729) foi reproposta e obteve um terceiro amargo e seco: "Negative".

Pela quarta vez, em 1763, foi apresentado o pedido de aprovação ao S.C. dos Ritos. A iniciativa partiu dos bispos poloneses. Alguns príncipes da Polônia e da França deram apoio ao pedido. O apoio mais imponente veio de 148 bispos da Europa que assinaram a petição, entre eles, S. Afonso Maria de Liquori.

A "causa" foi discutida por muito tempo. Em 2 de janeiro de 1765 a S.C. dos ritos aprovaria a festa do Sagrado Coração "pro regno Poloniae, pro catholicis Hispaniarum regnis, necnon pro archiconfraternitate sub titulo eiusdem santissimi cordis in Urbe". A decisão foi confirmada pelo Papa Clemente XIII no dia 6 de fevereiro do mesmo ano, que porém omitiu a frase "pro catholicis Hispaniarum regnis". A festa litúrgica era limitada à Polônia e à Arqui Confraria do Sagrado Coração de Roma. Para a festividade litúrgica estabeleceu-se a sexta-feira após Corpus Christi. A partir deste momento, iniciou-se na Igreja o culto público ao Sagrado Coração.

No decreto da aprovação é recordada a grande devoção do culto ao Sagrado Coração, "per onmes catholici orbis partes". O "sensus" do povo cristão foi determinante. O decreto negativo de 30 de julho de 1729 foi revogado.

Pouco tempo depois – em 11 de maio de 1765 – foi aprovado o texto de uma nova missa, chamado "Miserebitur". A notícia da aprovação da festa difundiu-de rapidamente. Muitas dioceses e famílias religiosas apressaram-se a pedir o indulto para celebrá-la, adotando os novos textos.

Todos o obtiveram. Entre os solicitadores, a Companhia de Jesus, as Visitandinas, as dioceses de Pozzuoli, Gallipoli, no sul da Itália, diversas comunidades religiosas das cidades Cápua e Nápoles. Os textos da nova missa desenvolvem o tema do amor misericordioso do Coração de Jesus, a onda salutar que jorra do coração dilacerado, a imolação de Jesus na cruz na sua natureza humana.

Extensão universal da liturgia do Sagrado Coração

A aprovação pontifícia – mesmo se limitada – provocou uma imensa difusão do culto ao Sagrado Coração. Não cessaram, porém, os dissensos ultrajantes dos jansenistas, que apresentavam o culto ao coração de Jesus como um ato de idolatria.

Em meio a esta acre polêmica, a rainha Maria Francisca de Portugal pediu ao Papa Pio VI, em 1777, o indulto de celebrar a festa litúrgica em Portugal e em todos os seus domínios. Pio VI "benigne annuit" ao pedido de indulto e a outros pedidos que diziam respeito à festividade do Sagrado Coração.

A revolução francesa e o período napoleônico derrubaram as polêmicas jansenistas e a devoção, por sua vez, desenvolveu-se ainda mais. Na metade do século XIX não havia quase nenhuma diocese que não tivesse obtido da Santa Sé o indulto de celebrar a liturgia do Sagrado Coração.

Com o passar de quase um século depois da aprovação romana (em 1765), Pio IX considerou que os tempos eram maduros para a extensão da festa à Igreja Universal e promulgou o decreto em 23 de agosto de 1856. Foi adotada a missa "Miserebitur" com o seu ofício na categoria de "duplex maius", segundo os graus da liturgia de então.

Conclusão

A extensão universal da liturgia do Sagrado Coração teve uma difícil gestação. As respostas "negativas" de Roma, o exame dos textos litúrgicos, a atenção em distinguir entre revelações privadas e o depósito da Fé, os quesitos não teológicos que dizem respeito às relações entre o coração e os sentimentos de amor, dor, etc., mostram quanto a Igreja seja cautelosa no que diz respeito ao culto público. A liturgia é a Fé orante. Se nada de ilegítimo pode entrar no Depósito da Fé, do mesmo modo nada de inseguro pode sobrepor-se ao esplendor da liturgia.

Uma das características da liturgia é espelhar-se nas diversas idades históricas, nos vários comportamentos de povos e nas diferentes espiritualidades de fundadores de ordens religiosas. Algo de semelhante ocorreu na formulação dos numerosos textos litúrgicos para as missas do Sagrado Coração anteriores a 1856.

Nessas emergem um contínuo e intenso trabalho que coloca em relevo numerosos aspectos da "caritas" humana e divina do Verbo-Homem: amor misericordioso, ternura de sentimentos, imolação, reparação, peso da ingratidão... Uma vasta "concórdia discórdia" de um grandioso coro, que comunica ao peregrino, nas estradas semi obscuras da história, serenidade e uma misteriosa energia para servir.

[continua]

Notas
1. As encíclicas intitulam-se com as duas ou três primeiras palavras do texto em latim.
2. Is. 12, 3.
3. Encíclica Haurietis Aquas, n.1.
4. O Beato José de Anchieta s.j. (1534-1591), nasceu em Santa Cruz de Tenerife, nas ilhas Canárias. Estudou na universidade de Coimbra; tornou-se um excelente humanista do rinascimento. Obteve dos seus superiores de ser enviado ao Brasil. Desembarcou em Salvador, na Bahia, em 1552. Evangelizador e defensor dos índios. As cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro consideram-no como um dos seus fundadores. Foi o primeiro poeta luso-brasileiro e iniciador do teatro no Brasil. A ele deve-se a primeira gramática da língua "tupi". "Arte de gramática da lingua mais usada na costa do Brasil". Compôs autos para o povo nas línguas tupi e guarani. Escreveu o poema heróico de 2947 hexâmetros : "De gestis Mendis Saa. Praesidis Brasiliane" exaltando a obra de civilização do terceiro governador geral do Brasil: Mem de Sá . Durante quatro meses foi tido como refém de paz dos ferozes e antropófagos "Tamoios" em "Iperoig" (Iperuí, hoje Ubatuba). No contínuo perigo de morte fez a promessa de compor um poema em honra à Mãe de Deus. Iniciou a composição durante aqueles dias tristes, memorizando os versos, às vezes escritos na areia : " De B. Vergine Dei Matre Maria ", 2893 dísticos. Em nossos dias este poema é considerado uma das grandes obras do Rinascimento. O Anchieta é chamado "O Cànario do Brasil"; expressão que indica a sua origem e finezza poética.
5. S.Pedro Canísio (1521-1597), também chamado segundo apóstolo da Alemanna, doutor da Igreja (1925), famoso pelos "Catecismos"; alheio às polêmicas que diziam respeito aos reformadores luteranos que ele chamava "irmãos". A sua profunda fé salvou-o do desesperado pessimismo nas mais desastrosas situações. A sua piedade desenvolveu-se na "devotio moderna", impregnada de "humanismo" e baseada nas Escrituras e na Patrística.
6. Eis o texto original em latim das notas espirituais, que dizem respeito à experiência do Coração de Jesus: "Unde Tu, o Salvator, tandem aperto mihi corde santissimi Corporis Tui, quod inspicere coram videbar, ex fonte illo ut biberem jussisti, invitans scilicet ad hauriendas aquas salutis meae de fontibus Tuis, Salvator meus". (Braunsberger, Canisius1. 55-59).
7. De La Puente Luis (1554-1624), renomado autor de obras ascéticas, traduzidas em muitas línguas.
8. Hajnal Matyas (1578-1644), missionário popular; colaborou com a recatolização da Hungria... Escreveu o livro de orações para a rainha Krisztina Nyàry. O livro fez um grande sucesso. Foi reeditado em ed. Facs. Budapest, 1992.
9. Druzbicki Kasper (1590- 1667), personalidade de destaque do catolicismo na Polônia. Além da obra "Meta cordium Cor Jesu" escreveu tratados mais extensos. As suas obras foram publicadas postumamente; tinham sido, no entanto, já divulgadas durante a sua vida, em cópias manuscritas.
10. Huby Vicent (1608-1693), fundador da primeira casa de exercícios espirituais, em Vannes; grande casa que podia acolher 300 exercitantes.
11. A obra entitulava-se: "De cultu sacratissimi Cordis Dei ac Domini nostri Jesu Christi in variis christianis orbis provincia jam propagato". Tinha sido escrita trinta anos antes, em 1696. Apesar dos censores daquele ano terem dado um juízo laudatório à obra, desaconselharam a publicação da mesma. Nos anos sucessivos o pe. Gallifet retocou-a e ampliou-a. Morando em Roma devido ao seu encargo de "Assistente" para a França, publicou a obra. Esta difundiu-se em toda a Europa, especialmente na Espanha, por meio de um estudante jesuíta: Bernardo Francisco de Hoyos (1711-1735).

Fonte: http://www.gesuiti.it/moscati/Brazil/Pr_SCuore_Paolino.html